A branquitude e sua influência na representação política nacional em debate no TRE-RN
Audiência pública discutiu a baixa representatividade de pretos, pardos e indígenas em cargos eletivos

O Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte realizou na tarde de ontem (30), no plenário da instituição, a audiência pública “A influência da branquitude na representação política brasileira”, com o objetivo de promover diálogo com a sociedade acerca dos impactos do uso indevido das cotas raciais por pessoas que não se reconhecem ou não são reconhecidas como negras ou indígenas.
A intenção do evento foi ainda a de possibilitar a escuta de especialistas, movimentos sociais e sociedade civil sobre o fenômeno do “branqueamento” das cotas raciais, além de levantar propostas de melhoria dos mecanismos de controle e verificação dessa política afirmativa pela Justiça Eleitoral e contribuir para a elaboração ou revisão de normas internas relacionadas ao tema.
A audiência foi presidida pela desembargadora Maria de Lourdes de Azevêdo, presidente do TRE-RN, e conduzida pelo juiz João Makson Bastos de Oliveira, da Comissão de Equidade Étnico-Racial e Diversidade, e contou com a participação remota da ministra Vera Lúcia Santana Araújo, vice-presidente da Escola Judiciária Eleitoral do TSE, segunda mulher negra a integrar o Tribunal Superior Eleitoral, advogada há mais de 30 anos e ativista dos direitos humanos.
Vera Lúcia discorreu sobre as raízes profundas do racismo na sociedade brasileira e ressaltou que sem a equanimidade das “presenças negras” nos espaços de poder e decisão em nossa sociedade, a Constituição Federal de 1988 se torna uma promessa enganosa. “A cidadania, tão bem cunhada na Constituição, ainda não se traduziu em realidade para o povo negro, em todos os campos, inclusive na ocupação política dos mais diversos espaços institucionais de todos os poderes, em todos os níveis”, afirmou, ressaltando que essa sub-representação se estende também às mulheres.
Questão inadiável

A desembargadora Maria de Lourdes de Azevêdo, durante a abertura do evento, destacou a importância do tema para a atuação do Judicário e o atual momento político do país, ressaltando que se trata de uma questão “urgente, complexa e inadiável”, visto que a branquitude não é apenas um dado fenotípico, mas um lugar simbólico e político de privilégios sociais que decorre de questões intimamente ligadas ao racismo estrutural que caracteriza a sociedade brasileira ─ e que precisa ser combatido para que se alcance a justiça racial e não se perpetuem desigualdades sociais.
Segundo a magistrada, promover a justiça racial no âmbito eleitoral implica reconhecer que a sub-representação da população negra nos parlamentos e nas lideranças do Executivo “não é casual nem neutra, mas consequência direta de um racismo estrutural que atravessa o financiamento de campanha, o tempo de propaganda, o acesso à visibilidade e até mesmo a credibilidade social das candidaturas”.
Democracia: um conceito amplo

A juíza auxiliar da Presidência do Tribunal e coordenadora do Laboratório de Inovação (LIODS) “Alzira Inova”, Ana Paula Barbosa, destacou que a amplitude do conceito de democracia se estende para além do voto livre e envolve também a ampla participação dos variados segmentos sociais, do que decorreria, portanto, a condição de ser “incompleta” a nossa democracia, em razão da sub-representatividade de mulheres, pessoas negras, indígenas e quilombolas.
Ana Paula ressaltou que essa realidade exige ações concretas para ser modificada. A audiência pública realizada pelo TRE-RN integraria, segundo ela, uma dessas práticas, constituindo uma política permanente do Tribunal ─ de promover ações voltadas à equidade racial. “Somente no ano de 2014 é que a Justiça Eleitoral passou a exigir a autodeclaração racial no registro de candidatura; a partir daí é que se descobriu o tímido número de pessoas negras e pardas na política brasileira. No ano de 2024, por exemplo, o número de prefeitos brancos eleitos foi quase o dobro daquele de prefeitos negros (pretos e pardos)”, revelou.
Além desses magistrados, a mesa do evento foi também formada pela deputada estadual Divaneide Basília; pela advogada Mikaelle Costa, presidente da Comissão de Promoção e Igualdade Racial da OAB/RN; pela antropóloga e cientista social Andressa Lidicy Morais, professora adjunta do Instituto Humanitas, da UFRN; pela advogada e professora Mariana de Siqueira, da UFRN; e pelo juiz Magno Kleiber, da segunda vara do Trabalho de Mossoró, presidente do Subcomitê de Gênero, Raça e Diversidade do TRT da 21ª Região.
A disparidade permanece

Os participantes da audiência reafirmaram, quase a uma única voz, que permanece no contextual atual a disparidade na relação entre brancos, negros e indígenas na representação política brasileira, marcada por forte desigualdade racial e pela sub-representação dos grupos não brancos.
Constatou-se que apesar de pretos, pardos e indígenas serem a maioria da população brasileira, os cargos eletivos são majoritariamente ocupados por pessoas brancas, como destacado principalmente por Divaneide Basílio, primeira deputada estadual autodeclarada negra no RN. “Na condição de parlamentar negra, eu preciso todos os dias reafirmar a nossa identidade e colocar as questões da negritude em debate, ainda que muitos a considerem algo menor, enquanto o pacto da branquitude está aí, estabelecido, e ninguém o questiona”, manifestou.
As cotas raciais foram estabelecidas justamente para tentar diminuir a disparidade entre a representação negra e branca.
O que é mesmo a branquitude?
O juiz João Makson iniciou os trabalhos salientando que a audiência pública constituía em si mesma um gesto simbólico e concreto da abertura do Judicário ao diálogo com a sociedade civil no que se refere aos indivíduos silenciados historicamente pelas estruturas institucionais.
João Makson reiterou que o compromisso institucional com a equidade racial não é apenas um dever ético, mas uma obrigação constitucional que exige posicionamento ativo no enfrentamento das desiguladades raciais. “No âmbito do TRE-RN, isso significa reconhecer que a sub-representação da população negra na política não é casual, mas fruto de um processo histórico marcado pela exclusão, pelo racismo estrutural e pela consolidação da branquitude como padrão de legitimidade das desigualdades raciais”, afirmou.
É possível, assim, fazer uma síntese das manifestações do encontro a partir do conceito de branquitude, entendida como a posição social, cultural e política de privilégio de ser branco em sociedades racializadas, exercendo influência profunda e muitas vezes invisível na representação política brasileira. No Brasil, país de formação mestiça, a hegemonia branca se manifesta na desproporção entre a demografia e a composição dos espaços de poder. O cenário é de uma maioria populacional sub-representada, enquanto um grupo minoritário detém a maior parte das cadeiras legislativas e dos cargos do Executivo. Essa dinâmica não apenas perpetua desigualdades históricas, mas também molda as prioridades e a agenda política de forma a atender predominantemente aos interesses de uma parcela específica da sociedade, como fez entender a advogada Mikaelle Costa.
Violência racial
O conceito de branquitude foi ampliado na argumentação da antropóloga Andressa Morais, que se utilizou do referencial teórico do livro “O pacto da branquitude”, de Cida Bento, já citado por vários dos participantes da audiência. Ressaltando um quadro persistente de desigualdade racial no Brasil e mais especificamente no Rio Grande do Norte, Andressa elencou algumas das consequências dessa hegemonia branca, que seriam vastas, violentas e com impacto direto sobre a formação psíquica de um indíviduo que deveria ser considerado social e politicamente em toda a sua inteireza. “Em todos os lugares os corpos racializados experimentam um tratamento discriminatório. E como cientistas sociais, frequentemente nos debruçamos a respeito do que incita as pessoas a se manifestarem de uma forma violenta, truculenta e desrespeitosa em relação ao outro”, argumentou.
Mariana de Siqueira, citando a filósofa estadunidense Angela Davis, disse que numa sociedade tão desigual e racista como a nossa, não é suficiente não ser racista: “é importantíssimo ser antirracista; ter, portanto, atuação concreta e ativa contra o racismo”. Ao discorrer sobre as diversas formas de racismo (recreativo, religioso, institucional etc.), mencionou ainda a forma de racismo que se manifesta nas ações que tentam enfraquecer as políticas de igualdade, inclusão e equidade racial. Retomando o conceito de branquitude, ela evocou Grada Kilomba, escritora e psicóloga portuguesa, para quem a branquitude é sobretudo um sistema de poder que opera em silêncio e não envolve apenas a cor da pele, mas também toda uma estrutura social que vai definir como o mundo funciona, para quem ele funciona de forma privilegiada e de que maneira ele acolhe ou exclui os sujeitos, e que se pauta na ideia de que “branco não é raça, não é algo identitário, sendo por isso mesmo quase naturalizado como sinônimo de pessoa”.
O juiz Magno Kleiber destacou que na condição de homem branco falar sobre o racismo não é um lugar natural de fala, mas de responsabilidade social, uma obrigação. “Eu não tenho direito de estar aqui; eu sou obrigado a estar aqui”, enfatizou, revelando que seu interesse era muito mais o de “letrar-se”. “Como homem branco, quero estar sempre atento e sensível às causas humanitárias, e sair do estado de ignorância”, complementou.
A ausência de representatividade impede que vozes sejam consideradas
A síntese do encontro leva a que se reflita que se os tomadores de decisão são predominantemente brancos, há a tendência de que as demandas e as realidades das populações não brancas sejam negligenciadas ou compreendidas de forma superficial. Questões como racismo estrutural, desigualdade racial e discriminação, que afetam profundamente a vida de milhões de brasileiros, muitas vezes não recebem a devida atenção ou são tratadas como pautas secundárias. A ausência de representatividade efetiva impede que as diversas vozes e experiências da sociedade brasileira sejam plenamente consideradas na construção das leis e dos programas governamentais.
Para que haja uma representação política mais equitativa e justa, é fundamental reconhecer e desconstruir os mecanismos da branquitude que operam no sistema. Isso envolve a implementação de políticas afirmativas eficazes, o fomento à participação política de grupos historicamente marginalizados, e uma mudança na percepção social sobre quem pode e deve ocupar os espaços de poder.
A audiência pública teve início às 14 horas e foi transmitida ao vivo pela internet, atráves do canal do TRE-RN no Youtube, no endereço:https://www.youtube.com/@justicaeleitoralrn

